agora quero vestir a noite de festa
e dar-lhe o brilho molhado da lua
abraçar o tecido negro e sedoso da sua pele
e menear as ancas ao som do piscar das estrelas
só depois seguirei o trilho claro dos teus olhos
e deixar que me embales na tipoia da tua alma

quero estar comigo

exausta, abandono-me na vontade de tanto te querer
banho-me no rio quente e escuro do ventre redondo da noite
e engulo o amargo do acre da saudade de te sentir.
então resisto, e mergulho nos sons do silêncio da dor que já conheço
finco os flancos, mordo os lábios secos ávidos de mim
rasgo o espaço e expulso da noite do ventre o grito rubro de ser
afinal, hoje eu sou a noite e quero estar comigo.

hoje apetece-me sonhar-te

hoje apetece-me sonhar-te
e apartar-te da viagem solitária
encurtar o espaço é uma questão de tempo
agora é mesmo um pequeno sopro de distância
que me retém no presente com paredes que fedem a gosto de ti
apetece-me sonhar-te e entregar-te este mim feito força
que te invadiu os sonhos e devorou as entranhas
distorceu as voltas da mente que entendias com voz de comando
quando beduíno me percebeste tenda da tua viagem

porque

porque te sonho em cada momento com um sonho de futuro que já fizemos presente e sorvo deliciada a dádiva de cada momento feito eternidade

por detrás das máscaras

por detrás das máscaras coube-nos o destino
de viver o sonho de um beduíno
reacender o lume e transcender o pleno
vestir o louco, festejar maldições, reinventar tradições
adorar o instante que repousa saciado na eternidade

pintando o destino

procurei a paleta e sonhei-me pintando o destino.
as cores gritaram, rasgaram sorrisos
e correram bamboleantes para o palco da festa.
lançaram torrentes de cor num curso imparável
marcaram contrastes fumaram e colaram perfis
brindaram à luz sem reservas numa composição de sois
e gozaram à farta o momento trocando-me as voltas.
em pose fintaram os caminhos e sem respeitar a vez
marcaram traços vivos, veios e novas rotas de cor
e tornaram ao meu colo saciadas enfim
assim me sonhei pintando o destino

no veludo do silêncio

espreguiço-me no veludo do silêncio
absorvo demoradamente os sons
que se esgueiram sorrateiramente pelas estradas de pele
e penetram numa sonata de fortes odores nas frestas de mim
sorvo o tempo que já não se veste de espera
gozo este novo tempo de festa e saboreio-lhe os contornos
é bom acordar de novo na nova pele com gosto de amanhã

contraditório

Contraditório...
foi assim, que o 'relojoeiro' se referiu àquele desacerto.
Agora fico em tempo de aprender
a colocar o tempo certo, na medida da distância,
naquela que na razão nos une em separado.
É assim: existem dois tempos/espaços reais, filha.
o teu e o meu em paralelo como gaia e urano traçaram.
mas não convergentes, assim eu tento e me (es)forço,
e eu quero largar o espaço do teu percurso no tempo real, juro que quero.
Depois, depois dou-me conta que quando tomas o teu curso
eu o confundo ou o reivindico como meu, qual kronos.
Sejas zeus assim o espero, senhora do teu olimpo
pois desfeito este kronos de mim minha hera
ficarei mais perto do teu tempo, do teu caminho.
contraditório...

minha cidade (n)dos setenta

fiquei mesmo com a lagrimita no olho.
ía aqui mesmo de passagem e o namibiano trouxe-me a luanda embrulhada nos anos setenta com os negoleiros a lhe darem cor.
senti a festa daquela altura quando era garota,
tinha ainda o perfume do planalto central mas aprendia esta força da luanda que guardei.
depois de algumas tentativas para arrancar do "podO" a música,
o namibiano deu-me um empurrão e aqui está a minha cidade é linda

hoje

Hoje vamos riscar o sol de uma rapsódia de azuis
e deixar que a sua lava amarela lamba o mar deitado aos nossos pés
enquanto mansamente se balança e descansa entre marés
a seguir, pé ante pé enrosquemo-nos entre os dois
e deixemo-nos fundir no seu colo entre temperos de luz

almas feitas cravos rubros em chamas de sul

Fiz-me nascida de dois pais pares a par
hoje vista de maneira diferente
mas mesmo assim com outros muitos olhos de mau ver.
Traziam consigo a natureza de mãe que me não pariu
mas vincaram-me o legado deste ser de mim.
Feita desta feita só hoje me reconheci
este mim que hoje faz ver-se com outro olhar.
Perguntaram-me ventos do sul de onde és
e os do norte o que és afinal
e a todos respondi o que o pai do norte me ensinou:
Não!"Não me digam mais nada senão morro
aqui neste lugar dentro de mim
a terra de onde venho é onde moro
o lugar de que sou é estar aqui...!"
assim com o verso do soneto presente que me alimentou me aquietei
Eis então que os olhos e as bocas do sul se escancaram
e de esguelha me encurralavam perguntando
E quem és afinal? para onde vais? o que esperas tu?
e a todos respondi o que o pai do sul me ensinou agora com o recado da alma de ventos do norte:
o que quereis vós, que alvíssaras vos hei-de dar?
"Não me peçam sorrisos ... as honras cabem aos generais...
...num novo catálogo, mostrar-te-ei o meu rosto
coroado de ramos de palmeira, e terei para ti os sorrisos que me pedes"
Assim feita de dois pais a par, ary e neto se colaram
em almas feitas cravos rubros em chamas de sul
deixando recados selados sagrados de almas gémeas
"...Aqui ninguém me diz quando me vendo
a não ser os que eu amo os que eu entendo
os que podem ser tanto como eu", pois é assim chegada a hora "...de juntos marcharmos corajosamente para o mundo de todos os homens"

Excertos de poemas:Ary dos Santos e Agostinho Neto

é (sempre) tempo



Minha laranja amarga e doce
Meu poema feito de gomos de saudade
Minha pena pesada e leve
Secreta e pura
Minha passagem para o breve
Breve instante da loucura
Minha ousadia, meu galope, minha rédia,
Meu potro doido, minha chama,
Minha réstia de luz intensa, de voz aberta
Minha denúncia do que pensa
Do que sente a gente certa
Em ti respiro, em ti eu provo
Por ti consigo esta força que de novo
Em ti persigo, em ti percorro
Cavalo à solta pela margem do teu corpo
Minha alegria, minha amargura,
Minha coragem de correr contra a ternura
Minha laranja amarga e doce
Minha espada, poema feito de dois gumes
Tudo ou nada
Por ti renego, por ti aceito
Este corcel que não sossego
À desfilada no meu peito
Por isso digo canção castigo
Amêndoa, travo, corpo, alma
Amante, amigo
Por isso canto, por isso digo
Alpendre, casa, cama, arca do meu trigo

Minha alegria, minha amargura
Minha coragem de correr contra a ternura
Minha ousadia, minha aventura
Minha coragem de correr contra a ternura (2x)

no inferno e o que os olhos vêem

Depois do filho ter chegado a casa indignado com a discussão que assistiu em torno do inferno não pude deixar de ficar de algum modo apreensiva com as imagens que o jornalista hoje nos apresentava.
Tenho receio de haver a possibilidade de vermos e não ouvirmos o comentário àquele cenário quase irreal.
Oh mãe, chegam a ser insensíveis e dizem até que não merecem a nossa solidariedade,
lutam umas com as outras... tornam-se frias... é o argumento
Lembrei-o do único exemplo que me ocorria para aquele quadro que pudesse demover os outros daquela confusão de sentimentos e fi-lo pensar no que o saramago bem retrata sobre desumanização face a situações de limite no ensaio sobre a cegueira.
Temos que ser solidários sim.
com a dor, no horror. o desespero, a desesperança e sobretudo com aqueles a quem roubam até aquilo que os faz segundo nós, humanos.
Era no fundo o que li ou(vi) nesta nota do apontamento jornalistico de hoje, a legendar os quadros de pilhagem. Mas receio mesmo que muitos se fiquem pelo que os olhos vêem e hoje gostava muito que se pudesse só ouvir.