do António Jacinto - Canto interior de uma noite fantástica

sereno, mas resoluto
aqui estou – eu mesmo! – gritando desvairado
que há um fim por que luto
e me impede de passar ao outro lado.

ante esta passagem de nível
nada de fáceis transposições
do lado de cá – pareça embora incrível
é que me meço: princípio e fim das multidões.

não quero tudo quanto me prometem aliciantes
nada quero, se para mim nada peço,
o meu desejar é outro – o meu desejo é antes
o sesejo dos muitos com que me pareço.

quem quiser que venha comigo
nesta jornada terrena, humana e sincera
e se for só – ainda assim prossigo
num mar de tumulto, impelindo os remos sem galera

que venham glaucas ondas em voragem
que ardam fogos infernais
que até os vermes tenham a coragem
de me cuspir no rosto e no mais.

que os lobos uivem famintos
que os ventos redemoinhem furiosos
que até os répteis soltem seus instintos
e me envolvam traiçoeiros e viscosos.

que me derrubem e arremessem ao chão
que espezinhem meu corpo já cansado
à tortura e ao chicote ainda responderei não
e a cada queda – de novo serei alevantado.
e não transportarei a linha divisória
entre o meu e o outro caminho
mesmo que a minha luta não tenha glória
é no campo de combate que alinho.

assim continuarei a lutar, ai a lutar!
num perigoso mar de paixões e escolhos
e – companheiros – se neste sofrer me virdes chorar
não acrediteis em vossos olhos!

António Jacinto